História

História do União Desportiva Vilafranquense

por: Filberto da Silva Gomes Barquinha

com: José Ceitil

 
A história dos clubes é feita de documentos escritos, fotos e outros registos do passado relevante do seu palmarés, reflectindo a dimensão humana e o tamanho dos afectos que unem quem os viveu. Por motivos que têm a ver com o atavismo luso em não preservar a memória e, no caso concreto do UDV, no desleixo por parte daqueles que o deviam fazer e não fizeram, perdeu-se grande parte desse acervo onde estavam registados alguns factos e feitos dos primórdios, bem como o caminho percorrido pelo Operário, Águia, Ginásio e Hóquei, até chegarem à fusão em 1957. Por isso é difícil a tarefa de perceber as curvas, os desvios e os obstáculos que estas colectividades tiveram que ultrapassar. Os testemunhos orais são uma forma de colmatar essa lacuna, apesar das traições que o tempo faz à memória dos que, generosamente, se prestam a tal. Nesta rubrica pretendemos, através de depoimentos e documentação que nos chegue, contribuir para um melhor conhecimento da história do clube da nossa terra.


Filberto da Silva Gomes Barquinha
Para começar, escolhemos ouvir – presidente do Águia em 1957 – por ser o único dos quatro que, felizmente, ainda está entre nós. Filberto da Silva Gomes Barquinha continua a ser, aos 86 anos, um unionista convicto. Encontrámo-nos a ver um jogo do União, num domingo à tarde, no Cevadeiro e combinámos esta conversa que teve lugar na sua casa, na Ericeira, numa manhã de sol em fins de Janeiro.

“Nasci em 1924, na rua da Bélgica em Vila Franca. O apelido Barquinha foi posto ao meu avô, Manuel Gomes, porque quando ele chegou na vila já havia outra família Gomes e para distinguir uns dos outros, o meu avô passou a ser conhecido como o Gomes da Barquinha, que era a terra dele”

Filberto Barquinha nasceu no mesmo ano do Águia, clube do qual viria a ser o último presidente mas começou por ter mais afinidades, até de carácter social, com o Operário. Explica: “Sabe, eu morava frente ao chafariz do Alegrete (onde está hoje o monumento ao campino) e esse era o ponto que demarcava a fronteira entre os varinos (apoiantes do Águia) e os “senhores da vila” (apoiantes do Operário). O facto de morar na fronteira e ter amigos dos dois lados fez de mim um homem que sempre procurou o consenso. Mas tinha mais vivência, sem dúvida, com o pessoal do Operário”

A conversa salta e gira ao ritmo das lembranças que interrompem o discurso e jorram em turbilhão por cima dos lapsos que atropelam o tempo e assim vamos andando até à pergunta:

Como eram os clubes nessa altura?
“A vida era mais dura para o Águia, porque era mais pobre e não tinha campo. Só havia um campo, o do Operário, que ficava a norte da vila, ali entre a rua do Curado e o palácio da Vilafrancada, que foi deitado abaixo. Só em meados dos anos trinta é que no Águia se constituiu uma comissão composta pelo Xico Alemão e Domingos Belo, para comprar aquele que viria a ser o seu campo, onde está hoje o viaduto da Auto-Estrada. Até então, tinham que andar com as balizas às costas a treinar no campo da feira, frente ao cemitério, e a interromper o treino quando passava um carro. Por isso, tiveram que chegar a um acordo e o Operário teve que ceder o campo ao Águia para os jogos e para dois treinos por semana”.

Os varinos eram a base social de apoio do Águia. Isso fazia dele um clube fechado?
“Não, não, de maneira nenhuma. O Águia era mais aberto do que o Operário que era, de facto, um clube elitista. O Águia safou-se porque como era uma delegação do Belenenses foi ajudado pelos azuis de Lisboa, que nessa altura era um dos grandes clubes do país, e o apoio chegou em forma de equipamentos, bolas e outras ajudas.”

Como é que era a partilha do campo entre os dois rivais?
“Era difícil…a rivalidade não permitia boa vizinhança entre os adeptos e isso reflectia-se nos dirigentes e jogadores.” Filberto Barquinha influenciado pelos amigos com quem mais privava fez-se sócio do Operário, aos 17 anos. Corria o ano de 1941 e no Operário viviam-se melhores tempos do que no Águia.

Quando é que se fez sócio do Águia?
“Poucos anos depois. Um dos meus melhores amigos era o Zé Cristino Sabino e era do Águia,e não descansou enquanto não me fez sócio. Entrei e em 1946 já fazia parte da direcção."

Então, chegou a ser sócio dos dois clubes?
“Deixei de ser sócio do Operário quando na qualidade de dirigente do Águia fui pela primeira vez ao campo deles e fui insultado por pessoas que eram minhas amigas, julgava eu. Chamaram-me de tudo, coisas absurdas, para mim, entre elas…traidor! Eu era um apaziguador e nunca entendi muito bem as rivalidades que partiam a vila ao meio. Eu via no desporto e na prática do futebol pela juventude, um meio de retirar os miúdos da taverna… que era a droga daquela altura. A minha maior preocupação era essa e fiquei chocado com a reacção das pessoas do Operário. E por isso deixei de ser sócio.”

No Águia, Filberto Barquinha aprendeu a ser dirigente desportivo com homens que estavam verdadeiramente apaixonados pelo clube, como diz “…o José Pereira e o Luís Melo, entre outros, ensinaram-me o que era devoção e espírito de missão. O ambiente era bom, fui muito acarinhado e também aprendi a gostar do clube. Ao contrário do que se dizia, o Águia era uma escola de virtudes, dentro e fora do campo. Nunca teve o campo interditado, ao contrário do que aconteceu com o Operário…”

Em que ano se começou a falar na hipótese de fusão ?
“ Foi antes de eu ser presidente. Mas entretanto começaram a surgir rumores a propósito do traçado da auto-estrada e a confirmarem-se, o Águia iria ficar sem campo. Essa possibilidade alterou o pendor para o lado dos que defendiam a fusão.”

Como eram as relações com os dirigentes dos outros clubes?
“Eram boas. Uma vez, o Alhandra jogava cá e o Álvaro, que era dirigente deles, ficou aflito porque se tinham esquecido duma forma de sapateiro para bater os pregos das
botas e preparavam-se para ir buscá-la de táxi e eu disse ao Álvaro que não era preciso ir a Alhandra buscar a forma porque nós emprestávamos a nossa. E assim foi! Noutra ocasião, o Alcanena veio cá jogar e não trouxe bola. Naquele tempo, uma bola era um objecto precioso que tinha que durar a época toda... Nós emprestámos uma bola para eles entrarem em campo e o reconhecimento deles foi demonstrado quando fomos jogar a Alcanena e fomos obsequiados com um banquete de luxo!"


Continuando a desfiar lembranças, Filberto Barquinha não escondeu a nostalgia quando em jeito de homenagem salientou: “O Águia teve grandes dirigentes mas devo destacar os que já mencionei e também o José Marques Pedrosa, o Xico Paulino e o Joaquim Cruz.” A fusão foi votada em Assembleia Geral por maioria mas com muitas lágrimas, mesmo dos que votaram a favor. Filberto sempre acreditou que um único clube podia unir e engrandecer o desporto na terra e ainda hoje continua a defender que, na altura, não havia outro caminho a seguir.

Filberto Barquinha foi funcionário do Banco Espírito Santo desde os anos 40, quando foi inaugurado o balcão de Vila Franca, e essa ligação profissional durou uma vida. Da sua terra fala com saudades do passado e recorda-a vibrante a qualquer hora do dia ou da noite, “Vila Franca nunca dormia. Havia
sempre gente na rua, nos cafés e restaurantes, na lota, no mercado, no café do Zé da Jockey, que era o ponto de encontro do pessoal do Águia, enfim, eram outros tempos.”

Após a fusão, como dirigente do UDV, empenhou-se nas modalidades de Hóquei e Ginástica e, juntamente com o Dr. Vidal Baptista, travou a batalha contra a A.G.P.L para poder construir o ringue de patinagem do clube no jardim Constantino Palha. Paralelamente, foi dirigente da AFL onde granjeou respeito e elogios pela forma como procurava resolver os problemas. O carácter de “homem de fronteira” permitiu-lhe estabelecer pontes, obter consensos sem abdicar da defesa das causas e princípios que considerava justos. Ao terminar o nosso encontro, Filberto Barquinha quis deixar uma mensagem:

“A todos os atletas da União Desportiva Vilafranquense, meu clube, gostaria de os ver envergar a camisola com total entrega e humildade, seguindo um princípio essencial: para sermos grandes temos que respeitar o adversário, obedecer aos árbitros e fazer o público feliz.”

Por José Ceitil, retirado do Jornal do Clube